Publicado originalmente no site da BBC Brasil, em 3 de agosto de 2016.
Bem-formada, nova geração chega mal-educada às empresas, diz
filósofo.
Ingrid Fagundez
Da BBC Brasil em São Paulo
Cortella lança o livro "Por que fazemos o que
fazemos?" sobre a busca de propósito no trabalho
Segunda-feira, seis da manhã. O despertador toca e você não
quer sair da cama. Está cansado? Ou não vê sentido no que faz?
Na introdução de seu novo livro, o filósofo e escritor Mario
Sergio Cortella coloca em poucas palavras o questionamento central da obra Por
que fazemos o que fazemos? Lançada em julho, ela trata da busca por um
propósito no trabalho, uma das maiores aflições contemporâneas.
Em entrevista à BBC Brasil, Cortella, também doutor em
Educação e professor, fala como um mundo de múltiplas possibilidades levou as
pessoas a negarem ser apenas uma peça na engrenagem.
O filósofo explica como a combinação de um cenário
imediatista, anos de bonança e pais protetores fez com que a "busca por
propósito" dos jovens seja muitas vezes incompatível com a realidade.
"No dia a dia, eles se colocam como alguém que vai ter
um grande legado, mas ficam imaginando o legado como algo imediato."
O dilema da geração Y na crise: Voltar a estudar ou aceitar
'qualquer coisa'?
Essa visão "idílica", afirma, transforma
escritórios e salas de aula em palcos de confronto entre gerações. "Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada.
Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção de hierarquia,
de metas e prazos e acha que você é o pai dela."
Leia os principais trechos da entrevista abaixo:
BBC Brasil - O que desencadeou a volta da busca pelo
propósito?
Mario Sergio Cortella - A primeira coisa que desencadeou foi
um tsunami tecnológico, que nos colocou tantas variáveis de convivência que a
gente fica atordoado. A lógica para minha geração foi mais fácil. Qual era a
lógica? Crescer, estudar. Era escola, e dependendo da tua condição, faculdade.
Não era comunicação em artes do corpo. Era direito, engenharia, tinha uma
restrição. Essa overdose de variáveis gerou dificuldade de fazer
escolhas. Isso produz angústia em relação a esse polo do propósito. Por que
faço o que estou fazendo? Faço por que me mandam ou por que desejo fazer? Tem
uma série de questões que não existiam num mundo menos complexo. Não foi à toa que a filosofia veio com força nos últimos
vinte anos. Ela voltou porque grandes questões do tipo "para onde eu
vou?", "quem sou eu?", vieram à tona.
BBC Brasil - Podemos dizer que nesse contexto vai ser cada
vez menor o número de pessoas que não tem esses questionamentos?
Mario Sergio Cortella - Cada vez menor será o número de
pessoas que não se incomoda com isso. O próprio mundo digital traz o tempo
todo, nas redes sociais, a pergunta: "por que faço o que faço?",
"por que tomo essa posição?". E aquilo que os blogs e os youtubers
estão fazendo é uma provocação: seja inteiro, autêntico. É a expressão
"seja você mesmo", evite a vida de gado.
BBC Brasil - No seu livro, você fala da importância do
reconhecimento no trabalho. Qual é ela?
Mario Sergio Cortella - O sentir-se reconhecido é sentir-se
gostado. Esse reconhecimento é decisivo. A gente não pode imaginar que as
pessoas se satisfaçam com a ideia de um sucesso avaliado pela conquista
material. O reconhecimento faz com que você perca o anonimato em meio à vida em
multidão. No fundo, cada um de nós não deseja ser exclusivo, único,
mas não quer ser apenas um. Eu sou um que importa. E sou assim porque é
importante fazer o que faço e as pessoas gostam.
BBC Brasil - Pelo que vemos nas redes sociais, os jovens
estão trazendo essa discussão de forma mais intensa. Você percebeu isso?
Mario Sergio Cortella - Há algum tempo tenho tido leitores
cada vez mais jovens. Como me tornei meio pop, é comum estar andando num
shopping e um grupo de adolescentes pedir para tirar foto.Uma parcela dessa nova geração tem uma perturbação muito
forte, em relação a não seguir uma rota. E não é uma recuperação do movimento
hippie, que era a recusa à massificação e à destruição, ao mundo industrial. Hoje é (a busca por) uma vida que não seja banal, em que eu
faça sentido. É o que muitos falam de 'deixar a minha marca na trajetória'.
Isso é pré-renascentista. Aquela ideia do herói, de você deixar a sua marca,
que antes, na idade média, era pelo combate. O destaque agora é fazer bem a si e aos outros. Não é uma
lógica franciscana, o "vamos sofrer sem reclamar". É o contrário. Não
sofrer, se não for necessário. Uma das coisas que coloco no livro é que não há
possibilidade de se conseguir algumas coisas sem esforço. Mas uma das frases
que mais ouço dos jovens, e que para mim é muito estranha, é: quero fazer o que
eu gosto.
BBC Brasil - Esse é um pensamento comum entre os jovens
quando se fala em carreira?
Mario Sergio Cortella - Muito comum, mas está equivocado.
Para fazer o que se gosta é necessário fazer várias coisas das quais não se
gosta. Faz parte do processo. Adoro dar aulas, sou professor há 42 anos, mas detesto
corrigir provas. Não posso terceirizar a correção, porque a prova me mostra
como estou ensinando. Não é nem a retomada do 'no pain, no gain' ('sem dor, não há
ganho'). Mas é a lógica de que não dá para ter essa visão hedonista, idílica,
do puro prazer. Isso é ilusório e gera sofrimento.
BBC Brasil - O sofrimento seria o choque da visão idílica
com o que o mundo oferece?
Mario Sergio Cortella - A perturbação vem de um sonho que se
distancia no cotidiano. No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém que vai
ter um grande legado, mas fica imaginando o legado como algo imediato. Gosto de lembrar uma história com o Arthur Moreira Lima, o
grande pianista. Ao terminar uma apresentação, um jovem chegou a ele e disse
'adorei o concerto, daria a vida para tocar piano como você'. Ele respondeu:
'eu dei'. Há uma rarefação da ideia de esforço na nova geração. E falo
no geral, não só da classe média. Tivemos uma facilitação da vida no país nos
últimos 50 anos - nos tornamos muito mais ricos. Isso gerou nas crianças e
jovens uma percepção imediatizada da satisfação das necessidades. Nas classes B
e C têm menino de 20 anos que nunca lavou uma louça.
BBC Brasil - Quais as consequências dessa visão idealizada?
Mario Sergio Cortella - Uma parte da nova geração perde uma
visão histórica desse processo. É tudo 'já, ao mesmo tempo'. De nada adianta,
numa segunda-feira, castigar uma criança de cinco anos dizendo: sábado você não
vai ao cinema. A noção de tempo exige maturidade. Vejo na convivência que essa geração tem uma visão mais
imediatista. Vou mochilar e daí chego, me hospedo, consigo, e uma parte disso é
possível pelo modo que a tecnologia favorece, mas não se sustenta por muito
tempo. Quando alguns colocam para si um objetivo que está muito
abstrato, sofrem muito. Eu faço uma distinção sempre entre sonho e delírio. O
sonho é um desejo factível. O delírio é um desejo que não tem factibilidade.
BBC Brasil - Muitos deliram nas suas aspirações?
Mario Sergio Cortella - Uma parte das pessoas delira. Ela
delira imaginando o que pode ser sem construir os passos para que isso seja
possível. Por que no campo do empreendedorismo existe um nível de fracasso
muito forte? Porque se colocou mais o delírio do que a ideia de um sonho. O sonho é aquilo que você constrói como um lugar onde quer
conquistar e que exige etapas para chegar até lá, ferramentas, condições estruturais.
O delírio enfeitiça.
BBC Brasil - Qual é o papel dos pais para que a busca pelo
propósito dos jovens seja mais realista?
Mario Sergio Cortella - Alguns pais e mães usam uma
expressão que é "quero poupar meus filhos daquilo que eu passei".
Sempre fico pensando: mas o que você passou? Você teve que lavar louça? Ou está
falando de cortar lenha? Você está poupando ou está enfraquecendo? Há uma
diferença. Quando você poupa alguém é de algo que não é necessário que ele
faça. Tem coisas que não são obrigatórias, mas são necessárias.
Parte das crianças hoje considera a tarefa escolar uma ofensa, porque é um
trabalho a ser feito. Ela se sente agredida que você passe uma tarefa. Parte das famílias quer poupar e, em vez de poupar,
enfraquece. Estamos formando uma geração um pouco mais fraca, que pega menos no
serviço. Não estou usando a rabugice dos idosos, 'ah, porque no meu tempo'. Não
é isso, é o meu temor de uma geração que, ao ser colocada nessa condição, está
sendo fragilizada.
BBC Brasil - Sempre lemos e ouvimos relatos de conflitos
entre chefes e subordinados, alunos e professores. Como se explicam esses
choques?
Mario Sergio Cortella - Criou-se um fosso pelo seguinte:
crianças e jovens são criados por adultos, que são seus pais e mantêm com eles
uma relação estranha de subordinação. A geração anterior sempre teve que cuidar
da geração subsequente e essa vivia sob suas ordens. A atual geração de pais e mães que têm filhos na faixa dos
dez, doze anos, é extremamente subordinada. Como há por parte dos pais uma
ausência grande de convivência, no tempo de convivência eles querem agradar. É
a inversão da lógica. Eu queria ir bem na escola para os meus pais gostarem,
não era só uma obrigação. Essa lógica faz com que, quando o jovem vai conviver com um
adulto que sobre ele terá uma tarefa de subordinação, na escola ou trabalho,
haja um choque. Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada. Ela não
chega mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção de hierarquia, de metas e prazos e acha que
você é o pai dela. Obviamente que ela também chega com uma condição magnífica,
que é percepção digital, um preparo maior em relação à tecnologia.
Texto e imagens reproduzidos do site: bbc.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário